quinta-feira, 8 de abril de 2010

Brasil pode liderar novo projeto de desenvolvimento mundial

O primeiro palestrante do seminário A estratégia socialista hoje, organizado pelo meu mandato, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), economista Márcio Pochmann, ressaltou o protagonismo do Brasil no atual cenário internacional, marcado pela grande crise do sistema capitalista detonada no último ano.

No encontro, realizado no dia 27 de março em Gravataí, Pochmann defendeu que o “deslocamento do centro dinâmico do mundo”, com os problemas enfrentados pelos Estados Unidos, abriu possibilidade do Brasil liderar a construção de um novo projeto de desenvolvimento em âmbito mundial, denominado por ele de “sociedade superior”. Para isto, sustentou o economista, o País precisa elaborar uma “agenda civilizatória, que modernize o Estado e o coloque em condições de “enfrentar os desafios do século 21”.

Confira texto de Márcio Pochmann

Novas perspectivas do desenvolvimento brasileiro
Marcio Pochmann

O Brasil que emerge após a contaminação da crise internacional apresenta condições reforçadas de prosseguir a trajetória recente do seu desenvolvimento. Suas instituições, forças produtivas e população, sobretudo a base da pirâmide social, passaram por verdadeiro teste de stress com resultados positivamente surpreendentes.

Sinteticamente, a crise pode ser compreendida como o esgotamento das forças do passado-presente sem que as forças do presente-futuro estejam ainda suficientemente maduras. Nos dias de hoje, três eventos estruturais prendem as economias modernas ao anacronismo do passado.
O primeiro deriva do esgotamento do padrão de financiamento das economias para o médio e longo prazos. Recorda-se que após a crise do sistema monetário-financeiro de Bretton Woods na primeira metade da década de 1970, a sustentação dos investimentos de maior prazo das forças produtivas caminhou cada vez mais dependente dos sofisticados mecanismos derivativos de financiamento.
A engenhosidade bancária-financeira descolada da regulação pública não apenas se autonomizou em relação ao setor produtivo, como consolidou implacável medida de geração impressionante da acumulação fictícia de capital. A evolução das inovações financeiras possibilitou que a relação entre o total dos estoques de ativos financeiros em relação ao produto mundial passasse de 1,02, em 1980, para 3,7 em 2008.
Nesse mesmo período, a produção mundial cresceu 4,1 vezes, enquanto a riqueza financeira aumentou 13,9 vezes. O novo padrão de financiamento de longo prazo que supere o brutal descolamento entre produção e riqueza financeira está ainda por ser construído.
O segundo evento estrutural em que se insere a crise internacional resulta da incompatibilidade do atual modelo de produção e consumo com a sustentabilidade ambiental. Ainda que menos de 1/3 dos 6,5 bilhões de habitantes do planeta terra participam, de fato, da lógica de consumo fortemente degradante do meio ambiente, sabe-se que já se mostra suficiente para impor mudanças climáticas brutais e incompatíveis com a continuidade decente do ciclo de vida.

A perspectiva do mundo pós-crise internacional manter o mesmo modelo de produção e consumo tende a aprofundar ainda mais a dramática situação ambiental. Somente uma onda de reestruturação produtiva fundamentada em tecnologia biosustentável permitirá salvar o planeta do anacronismo humano dependente do consumismo e produtivismo degradante.

Por fim, o terceiro, não menos importante evento estrutural da crise: a desgovernança mundial.
Destaca-se que parcela significativa da saída da Segunda Guerra Mundial se deu por conta da montagem da Assembléia Geral das Nações Unidas como medida de governança do mundo moderno.
Por meio de diversas agências multilaterais, o mundo convergiu, em maior ou menor medida, com padrão de desenvolvimento de redução de desigualdades, mesmo durante a guerra fria. Naquela época, recorda-se, os países, em geral, tinham empresas, diferentemente do que ocorre atualmente quando são as grandes corporações transnacionais que apresentam faturamento superiores ao produto interno bruto de países.

Esse novo contexto internacional requer reconversão da governabilidade mundial. O fortalecimento das instituições internacionais, bem como a constituição de novas permitirá conduzir o mundo para a convergência financeira, produtiva e ambiental contemporânea do século 21.

A luta pelo desenvolvimento brasileiro
A construção de uma sociedade superior no Brasil não se mostra recente, pois faz parte de distintos momentos históricos nacionais. De maneira geral, a transição da antiga sociedade agrária para a sociedade urbano-industrial foi longa, durante quase três séculos. Desde a abertura dos portos movida pela chegada da família real até a Revolução de 1930, o Brasil registrou os eventos da Independência Nacional, da abolição da escravatura e do nascimento da República que permitiram avançar insuficientemente para a constituição do projeto de desenvolvimento nacional.

Somente com o impulso da Revolução de Trinta, que o projeto de construção da nação urbano-industrial foi posto definitivamente em marcha. Dessa forma, o Brasil conseguiu abandonar a condição de sociedade primitiva imposta pelas limitações da economia primário-exportadora e o conservadorismo do agrarismo.

Ainda que incompleto, o projeto de país urbano e industrial estabeleceu avanços consideráveis às forças produtivas cada vez mais caracterizadas pela modernidade da sociabilidade capitalista do século 20. Para que as diferentes formas de desigualdades fossem contidas, o país precisaria ter passado por reformas democráticas que terminaram sendo postergadas ao limite.

A força das transformações econômicas e sociais no Brasil impulsionada pela maioria política que emergiu da Revolução de Trinta terminou sendo somente desconstituída cinqüenta anos depois, por meio da crise da dívida externa, logo no início da década de 1980. Da mesma forma que o fim da escravidão implicou a queda do antigo Império no Brasil, em 1889, a saída da crise da dívida externa pelo caminho da recessão entre 1981 e 1983 - a primeira desde 1929 -, acelerou mais rápido o processo de transição negociada da ditadura militar para o regime democrático.
Assim, o mais bem sucedido ciclo de expansão industrial da periferia do capitalismo mundial chegou ao fim, junto com a fragmentação da maioria política que conduziu o projeto nacional de desenvolvimento urbano-industrial entre as décadas de 1930 e 1970. Maioria essa que não foi necessariamente democrática, tendo permanecido somente 22 anos sob o regime de eleições gerais e diretas durante os cinqüenta anos de forte expansão econômica. Tampouco se mostrou engajada com a redistribuição da renda e riqueza geradas, tendo descartado, sempre que possível, a realização das chamadas reformas civilizatórias (agrária, tributária e social) do século 20 adotadas em praticamente todos os países desenvolvidos.

Por conta disso, o avanço da base material da economia terminou descolando-se do desenvolvimento social, como se o novo terminasse assumindo a continuidade do velho. Na convergência de “fugir para frente” por meio da opção exclusivista do avanço das forças produtivas, a maioria política garantiu os elementos necessários para transformar o país da condição primário-exportadora para a de economia urbana e industrial quase que completa.
Não fosse o desmanche da crise da dívida externa, sucedida por diversos equívocos de políticas macroeconômicas, o Brasil despontaria nos dias de hoje como a terceira maior economia do mundo. Infelizmente, as duas décadas que se seguiram após a crise da dívida externa (1981 – 1983) não se mostraram suficientes para a construção de uma nova maioria política compromissada com a sustentação do desenvolvimento econômico e social.

Pelo contrário, o que se assistiu foi a regressão de posições alcançadas nos últimos cinqüenta anos, com o rebaixamento da posição de oitavo produto industrial, o esvaziamento da pauta de exportação, a queda relativa dos investimentos produtivos, a ascensão dos negócios financeiros, entre outros. O resultado também se traduziu na perda relativa de importância na economia mundial durante o último quartel do século 20.

No cenário econômico de baixo dinamismo, o Estado foi transformado significativamente para o atendimento do processo da acomodação política decorrente de exigências tanto da pressão democratizante como dos interesses majoritários do avanço da acumulação com dominância financeira. Para isso, as contas públicas sofreram excepcional ajuste, tendo a Carga Tributária Bruta aumentou 46,1% em relação ao Produto Interno Bruto (ou 11,3 pontos percentuais a mais) a partir de 1980.

A ampliação da Carga Tributária Bruta não significou, contudo, aumento da capacidade efetiva do gasto público. Isso porque precisa ser contabilizado o desconto prévio de transferências sociais e subsídios e do pagamento com juros do endividamento público. Enquanto as transferências sociais e subsídios dobram relativamente ao Produto Interno Bruto (PIB), o pagamento com juros da dívida foi multiplicado por mais de três vezes em relação ao PIB.

Todo esse profundo ajuste nas contas públicas refletiu o dilema de um país que voltou a conviver com o regime democrático, após 24 anos de autoritarismo e de crescimento econômico com exclusão social (1964 – 1985). A pressão social e política derivada por demandas reprimidas durante a ditadura militar encontrou-se diante de uma economia submetida ao baixo dinamismo das décadas de 1980 e 1990, incapaz de gerar emprego para todos e crescentemente reprodutora de regressão social.

Não foi por outro motivo que a resposta governamental às demandas reprimidas terminou sendo encaminhada pela via da elevação da carga dos tributos, mais precisamente para dar conta do aumento dos juros da dívida e das transferências e subsídios fiscais. Dessa forma, o Brasil conseguiu impôs alguns ganhos no gasto social, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, com as políticas de garantia de renda (previdência e assistência social, bolsa família, entre outros) e subsídios a grupos políticos organizados (abatimento de gastos privados com educação, saúde e assistência na declaração do imposto de renda).

Simultaneamente, o ciclo de duas décadas de semi-estagnação na produção brasileira pós-crise da dívida externa derrubou, de maneira geral, alterou a expectativa empresarial frente à queda na taxa média de lucro. Em virtude da pressão da cúpula da pirâmide social brasileira, o Estado, por fim, promoveu e sustentou a expansão da acumulação fictícia de capital, por meio da política macroeconômica de financeirização da riqueza.

O endividamento público, alimentado por taxas reais de juros super-elevadas, garantiu a transferência de cerca de 6 a 7% do PIB anual para o segmento rentista no país. Somente o Estado, por meio de inédita ampliação da carga tributária, conseguiu atender pressões tanto da base social estimulada pelo regime democrático como da cúpula da pirâmide da sociedade decorrente da queda da taxa média de lucro nos setores produtivos.

Essa situação, entretanto, sofreu significativa inflexão somente no período mais recente, com a interrupção do modelo possível de inclusão social de somente 1/3 da população. A reconstrução do Estado, acompanhando de políticas macroeconômicas de viabilização da expansão produtiva e de inclusão social, tem permitido ao país voltar a se constituir como fruto de um projeto novo de desenvolvimento de sociedade para todos, como também a expressão da liderança no contexto global, por meio do seu reposicionamento econômico, social, político e ambiental.

Nova perspectiva do desenvolvimento brasileiro

Os indicadores de reafirmação do Brasil no mundo apontam para o protagonismo de sua estabilidade política e econômica a protagonizar a integração do desenvolvimento na região sul-americana. Além disso, a melhora recente no padrão de bem estar dos brasileiros, com a saída da condição de pobreza de milhões de pessoas e a redução na desigualdade da renda no interior do mundo do trabalho confirmam o compromisso geral de mudanças que não deveriam ser interrompidas por mudanças governamentais.

Tudo isso, contudo, pressupõe ainda a consolidação de uma ampla maioria política comprometida com o processo de transformação da sociedade brasileira, em torno da utopia da construção do estágio superior de sociedade eivado da transição em curso da economia urbano-industrial para a pós-industrial. Não se trata, evidentemente, da superação do papel estratégico da indústria e da agropecuária, mas conceder ênfase adequada nos serviços como organizadores da nova riqueza e dos postos de trabalho em expansão para o conjunto da população.

A conexão do Brasil do presente com o futuro pressupõe reconsiderar certos “defeitos” que atingem historicamente a nação: a força do processo de financeirização da riqueza e o subdesenvolvimento da ausência da plena ocupação e da injusta repartição da riqueza e das rendas geradas.

O conjunto de mazelas nacionais contém segmentos sociais que reunidos e articulados em torno de um novo ideário poderia forjar a base da maioria política necessária às mudanças transformadoras. Nesse sentido, não se poderia abandonar a perspectiva de construção da agenda civilizadora para o século 21, com a promoção e defesa da produção e emprego nacionais, acompanhada da efetivação das reformas patrimoniais modernizantes, como a repactuação da nova riqueza (produtividade imaterial que acumulada a quase 50% do produto anual).

A busca da eqüidade social deveria ser regida pelo reconhecimento e valorização de distintos esforços realizados por variados segmentos sociais, ser a favor da produção e da reprodução das novas fontes de riqueza nacional. Assim, benefícios desconectados da eficiência econômica – como a herança, ganhos especulativos e financeiros improdutivos –, entre outros, precisam ser revistos à luz de um novo compromisso político-social com o desenvolvimento soberano e sustentável ambientalmente da nação.

Por ser um país ainda em construção, com a incompleta infra-estrutura e a enorme ociosidade de parte de sua força de trabalho, a convergência de esforços associados ao alongamento da capacidade de produção pressupõe a inversão da tendência de mais de meio século de queda na parcela do rendimento do trabalho na renda nacional. Atualmente, os brasileiros que somente dependem do seu próprio trabalho para sobreviver, ficam com cerca de 40% de toda a renda nacional, enquanto, na década de 1950 aproximavam-se dos 60%.

A ênfase no estabelecimento de uma nova agenda civilizatória merece ser perseguida, permitindo a reconstrução da sociabilidade perdida, bem como liberação do homem do trabalho heterônomo no contexto das exigências da sociedade pós-industrial. Ou seja, o ingresso no mercado de trabalho aos 25 anos (ao invés de 16 anos de idade), a educação para o longo da vida (ao contrário de somente crianças, adolescente e jovens), as 12 horas semanais no local de trabalho (ao invés de 44 horas) e a expansão de atividades ocupacionais socialmente úteis à sociabilidade, como cuidadores sociais, entretenimento e outras.

A base material necessária à sustentação desse novo patamar civilizatório global já existe, tendo em vista o crescente ganho de produtividade (física e imaterial) oriundo do capitalismo pós-industrial deste começo do século 21. Destaca-se, por exemplo, que para cada dólar derivado da produção material há, simultaneamente, outros 10 oriundos do conjunto das atividades imateriais (não produtoras de bens, mas de mercadorias intangíveis). A captura dessa parcela do excedente econômico reafirma o projeto de sociedade protagonizado pela progressividade tributária e pela amplificação do gasto social capaz de gerar autonomização e empoderamento no conjunto dos povos no mundo.

Mas isso pressupõe o avanço em novos modos de regulação que potencializem a elevação da produtividade e seu repasse equânime a toda população. Assim, o improviso dos ganhos fáceis no curto prazo deve dar lugar ao planejamento de maior tempo nas decisões públicas e privadas que se relacionam às oportunidades atuais de desenvolvimento do país. Na medida em que se debate a respeito do patrimônio que a nação deseja possuir no amanhã, coloca-se em marcha a convergência política necessária para a efetivação das medidas estratégicas que realmente podem asfaltar o caminho do futuro. Seria o caso da constituição de uma nova maioria política, capaz de conter um conjunto amplo de interesses sociais marginalizados pelo neoliberalismo.
A emergência desse novo tipo de aliança política poderia fortalecer o conjunto dos estratos sociais de baixa renda e de nível médio, geralmente, integrados por alguma forma de organização e que expressam resistências à condução neoliberal do projeto de sociedade dos ricos e poderosos. O elemento central se daria em torno da ampliação e reorientação do fundo público descomprometido com a improdutividade do circuito da financeirização da riqueza, para a conformação de uma nova agenda civilizatória consonante com as exigências da sociedade pós-industrial.

O fundo público originado pela luta política dos segmentos sociais mais organizados precisa ser reformulado e novamente vinculado às receitas originárias, permitindo favorecer tanto a progressividade na tributação sobre a renda dos ricos como a universalidade da proteção social (saúde, educação, pleno emprego, assistência social, entre outros). Esse sentido, obstaculizado pelo processo de financeirização da riqueza, responsável pela adoção de programas de ajuste estrutural e pela condução de políticas econômicas e sociais neoliberais, pode sofrer uma nova reconfiguração a partir da crise atual.

A defesa das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo permitiria ampliar o componente estratégico definidor de uma nova maioria política no Brasil. Da mesma forma que há inegáveis dificuldades políticas para fazer convergir segmentos tão heterogêneos, permanece o desafio de incorporação dos novos contingentes sociais incluídos nos últimos cinco anos e que ainda parecem permanecer com baixo poder de pressão. A emergência dessa nova estratificação social em distintas regiões do Brasil precisa ser considerada, permitindo não apenas a organização da dinâmica econômica como estruturação de políticas universais de proteção social.

1 . Márcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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